José Luiz Lourenço Junior Paulo Henrique Cremoneze
Breve introdução dos autores: O tema em destaque chama nossa atenção. Há em curso uma tendência de se querer ampliar os efeitos jurídicos e práticas da cláusula de arbitragem, atingindo quem dela não é parte legítima e interessada. Entendemos que essa tendência é equivocada e não terá força para seguir adiante, até porque o posicionamento jurisprudencial é claro e praticamente uniforme no sentido de a cláusula de arbitragem não projetar efeitos para quem dela não tomou parte voluntariamente. Não se pode deslembrar que a voluntariedade é a qualidade por excelência da arbitragem, sem a qual ela não se fez meio legítimo de solução de litígios, mas imposição arbitrária e inconstitucional. No campo do Direito Marítimo, notadamente na parte que ele se justapõe ao Direito do Seguro, o tema assume especial relevância e merece ser abordado com seriedade. A melhor forma de se evitar um erro inoculado de grave injustiça é combate-lo no seu nascedouro, na fonte de sua gênese. Daí o propósito do nosso presente e conjunto estudo. Falamos, especialmente, do seguro de transporte de carga, do próprio transporte marítimo de carga e da sub-rogação. A seguradora sub-rogada nos direitos e ações de um segurado, consignatário de carga, vítima de uma relação contratual de transporte frustrada pelo armador (transportador marítimo) não pode ser obrigada a aderir ao procedimento de arbitragem imposto unilateralmente no corpo do conhecimento marítimo, o instrumento que configura o contrato de transporte marítimo de carga. Existem razões de sobra para não se admitir a amplitude indevida da cláusula de arbitragem e elas serão expostas com certa riqueza de detalhes pelos autores doravante. Antes, contudo, muito aproveita enfatizar que no caso específico da cláusula de arbitragem presente no contrato de transporte marítimo (internacional) de carga existem duas razões fundamentais para sua não aplicação, sendo uma geral e outra própria para o caso da seguradora sub-rogada. Ei-las: a primeira e geral: a cláusula de arbitragem constante no anverso do conhecimento marítimo é redigida em dissonância com a Lei de Arbitragem do Brasil, razão pela qual é nula de pleno Direito. Mesmo o consignatário da carga, parte no contrato, não pode ser obrigado à obedece-la porque manifestamente abusiva e ilícita. Já a segunda causa, relativamente à seguradora sub-rogada, reside no já comentado atributo da voluntariedade, uma vez que a seguradora não é parte da relação contratual de transporte, não se lhe podendo, portanto, impor um ônus convencional, ainda que este fosse harmônico à lei da arbitragem. Ao contrário do que se ventila por aí, existem limites para a sub-rogação e estes são bem esquadrinhados pelo sistema legal como um todo. Para melhor inteligência do assunto ora abordado, dividimos esse trabalho em três momento, além desta breve introdução: as considerações de cada autor (duas, portanto) e a conclusão comum, absolutamente sumária, visando a aplicação prática do que ora se defende. Das considerações do coautor José Luiz Lourenço Junior Não é um clamor tão atual, mas sim já muito debatido acerca da morosidade do poder judiciário no trâmite de seus processos judiciais. Fala-se em excesso de processos, em uma garantia exagerada de recursos, dentre outros argumentos. Justamente neste sentido teremos em breve a entrada em vigor de um novo Código de Processo Civil com a intenção de processos mais ágeis e eficientes, resolvendo (ou tentando) desta forma tal clamor da sociedade. Uma das formas auxiliares do poder judiciário certamente é a arbitragem que via de regra, propicia uma resolução rápida e ágil de conflitos, que se levados ao judiciário demandariam tempo e enormes recursos financeiros na prestação de serviços jurisdicional. Porém, o princípio basilar desta medida auxiliar do poder judiciário é justamente a voluntariedade, em outras palavras, os aderentes devem manifestar expressamente seu aceite e desejo de submeter eventual lide à arbitragem, não podendo, sob hipótese alguma, ser obrigada a instruir os cuidados de eventual lide a arbitragem. Neste sentido passaremos a discorrer sobre as razões da não aplicabilidade da cláusula de arbitragem diante da seguradora sub-rogada nos direitos do segurado no contrato de transporte. 1. A natureza jurídica do contrato de transporte marítimo. O “Bill of lading” chamado popularmente de “BL” é o instrumento válido do contrato de transporte marítimo, é elaborado pelo transportador, e em seu anverso já estão colocadas todas as cláusulas e condições atinentes ao transporte marítimo, colocadas, frise-se, de maneira unilateral. Na feliz definição contida da obra da Profª. Eliane Octaviano Martins, Curso de Direito Marítimo, “Nos contratos de transporte marítimo existem regras imperativas que se sobrepõe a autonomia de vontade das partes, remetendo, portanto, o BL à natureza jurídica de contrato ou documento de adesão”. (apud, V. ESTEVES, 1988, p.17). Diante do explanado, parece cristalino que a natureza do contrato de transporte marítimo é por excelência um contrato de adesão no qual as partes, em momento algum negociaram suas cláusulas, estando ausente portanto em todo seu texto, qualquer caráter voluntário e bi lateral acerca de suas cláusulas, inclusive, a que determina a submissão do dono da carga a arbitragem para resolução de eventuais lides, objeto deste artigo. 2. A Lei de Arbitragem e seu caráter de voluntariedade. O marco regulatório da arbitragem em nosso ordenamento jurídico é a lei nº 9.307/1996, no caso em tela, nos reportaremos ao art 4º § 2º que prescreve: “A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato. § 2º Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula.” Diante da inteligência do referido diploma legal, percebemos que no caso dos contratos de adesão, como o é no caso em tela, a cláusula compromissória de arbitragem, só será eficaz quando o aderente concordar expressamente com sua instituição, frise-se que a lei, em caráter de ampla voluntariedade fala em “tomar a iniciativa”, ou seja, deve ocorrer uma ampla manifestação da vontade de instituir a cláusula de arbitragem. Além disso, o artigo institui inclusive a forma com que essa manifestação de vontade deve ser feita, “em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula”. O cuidado do legislador não é em vão e amplia a vontade das partes em um contrato cuja manifestação de vontade é em regra unilateral, tornando qualquer forma em contrário, nula de pleno direito. Ainda neste sentido e com o mesmo intuito parece-nos mais justo que a cláusula de arbitragem seja adaptada para “oferta de arbitragem” que daria além da possibilidade de arbitragem, a não vedação do direito de acesso ao judiciário para resolver eventuais lides, ficando no caso concreto a decisão ao consumidor de decidir ou não optar pela intervenção da arbitragem. 3. O Código de Defesa do Consumidor O código de defesa do consumidor, instituído em nosso ordenamento jurídico por força da lei 8.078/1990 em seu artigo 51 também agasalha a presente discussão e justamente amplia o caráter voluntário do cláusula de arbitragem, prescrevendo em seu parágrafo VII o que segue: “Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: VII – determinem a utilização compulsória de arbitragem;” Com a inteligência do art. 51 temos mais um elemento de vedação que obrigue a seguradora sub-rogada se submeter a arbitragem, visto que o código de defesa do consumidor torna nula uma cláusula compulsória de arbitragem. Neste aspecto ampliamos um pouco a discussão do tema, tendo em vista que a lei de arbitragem é posterior ao código de defesa do consumidor, o que pode suscitar uma revogação deste artigo apresentado. Porém, entendemos que o mesmo está em pleno vigor e que reforça ainda mais o princípio voluntário da arbitragem, tendo em vista que torna nula a cláusula que coloca esta submissão da lide ao juízo arbitral feita de maneira compulsória, como nos parece acontecer no caso do “BL” que já tem a cláusula pré-estabelecida de maneira unilateral e obriga o consumidor levar o caso da eventual lide para a resolução da arbitragem. Além disso o princípio contido no Código de Defesa do consumidor nos parece justo, tendo em vista que a arbitragem mesmo que positivada através de lei vigente, jamais pode coibir o direito do cidadão de acessar seu poder judiciário para dirimir eventuais lides. 4. Do instituto da sub-rogação e sua ampla aplicação. A sub-rogação legal da seguradora nos direitos do segurado, encontra fulcro nos artigos, 985, Inciso III, 988 e 1.524, do código civil. Em uma feliz definição, Paulo Henrique Cremoneze, em sua obra, “Prática de Direito Marítimo” prescreve: “A sub-rogação legal que se da com o pagamento da indenização abrange todos os direitos e ações, inclusive os de cepa consumerista. Logo, pelo fenômeno jurídico da sub-rogação legal (contratual), a seguradora é, sim, equiparada ao consumidor, pois deste “herdou” todos os direitos e ações.” Diante disso, nos parece claro que o fenômeno da sub-rogação da o direito da seguradora de atuar em todos os direitos do consumidor, como se este fosse, não podendo ocorrer nenhuma vedação de suas prerrogativas e direitos, sob pena de se estabelecer verdadeira insegurança jurídica. Ainda neste sentido, não nos parece palpável que o cálculo do risco que a seguradora assuma esteja incluído também, a submissão de eventual lide à arbitragem, pois há elementos presentes, tanto na lei de arbitragem, quanto no Código de Defesa do consumidor vedando a obrigatoriedade desta submissão. Das considerações do coautor Paulo Henrique Cremoneze Para se entender bem o assunto arbitragem dentro do cenário do Direito Marítimo e a parte que toque, em especial, ao segurador sub-rogado, é necessário, antes, brevíssima compreensão desse ator importante na disciplina, protagonista de muitas disputas judiciais. E isso é feito com abordagem de alguns pontos importantes e repetitivos em disputas judiciais diversas. A saber: DO SEGURADOR DE CARGA Segurador da carga é personagem importantíssimo no mundo do Direito Marítimo. Normalmente, as ações envolvendo questões maritimistas têm num no pólo ativo o segurador da carga do navio. Com efeito, os valores envolvidos e os riscos reclamam a participação desse importante personagem. Embora não existam dados científicos e rigorosos a respeito, ousamos dizer, com base no puro empirismo, mas de forma abalizada, que certa de 90% (noventa) por cento dos transportes marítimos tem cargas seguradas. Para se falar do segurador de carga é preciso falar, antes, do seguro de transporte marítimo e, ainda antes, do próprio contrato de seguro. Seguro, nada mais é, do que um importante mecanismo social, que tem por escopo associar indivíduos em um grupo com vistas a pagar as perdas decorrentes de riscos previamente delimitados, usando recursos acumulados por contribuições dos membros do grupo. O artigo 757, “caput”, do Código Civil define o seguro, vale dizer, o contrato de seguro da seguinte forma: “Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados”. O presente dispositivo legal não é muito diferente do artigo 1.432 do antigo Código Civil, que assim prescrevia o contrato de seguro: “Considera-se contrato de seguro aquele pelo qual uma das partes se obriga para com a outra, mediante a paga de um prêmio a indenizá-la do prejuízo resultante de riscos futuros, previstos no contrato”. A semelhança das definições legais se justifica plenamente, na medida em que o seguro é um dos contratos mais antigos do Direito brasileiro, guardando íntima relação com o Direito Marítimo, uma vez que o primeiro contrato de seguro vigente no país foi exatamente o contrato de seguro do navio, segundo o Código Comercial. O contrato de seguro é de índole universal e possui três elementos característicos, inafastáveis e próprios de sua gênese, quais sejam: a) Previdência; b) Incerteza e c) Mutualismo. Tratando, ainda que sumariamente, de cada uma das aludidas características, temos: a) Previdência: é o sentimento que move as pessoas que se agregam em torno do segurador, premidas pela incerteza dos tempos futuros e eventos porvir, materializando-se numa poderosa ferramenta de proteção contra danos e perdas que possam lhes causar desequilíbrio econômico-financeiro. b) Incerteza: é o sentimento que antecede, naturalmente, a previdência. Ora, a aflitiva condição humana de desconhecer os insondáveis mistérios da vida, o fato de estarem sempre os homens à mercê da álea configura o pilar maior do seguro. Não se saber o que esperar do futuro é o que gera o desejo de buscar mecanismos de cautela e de proteção. c) Mutualismo: em se tratando de contrato de seguro, pessoas, naturais e/ou jurídicas, com interesses seguráveis comuns, concorrem para a formação de um grupo, uma massa econômica, em torno de um segurador, com o propósito de suprir, em determinado momento, necessidades eventuais de algumas e/ou de todas aquelas pessoas, quando o risco deixa de ser risco (mera abstração), para assumir o colorido de sinistro (ocorrência de fato do dano e da perda). Em síntese: como as pessoas têm incerteza quanto aos acontecimentos, positivos, mas sobretudo, negativos do futuro, resolvem adotar sistemas de proteção, homenageando-se a ideia de previdência, aglutinando-se economicamente com vistas ao restabelecimento do equilíbrio financeiro em caso de afetamento. Todo contrato de seguro é bilateral, oneroso, aleatório e solene, entre outras características. Bilateral porque exige as figuras, reciprocamente consideradas, do credor e do devedor. No que tange à obrigação principal, a do seguro, o credor é o segurado e o devedor é o segurador (os pólos são obviamente invertidos quando o que se tem em conta é a obrigação, em verdade contraprestação, de pagamento do prêmio). Oneroso porque ambas as partes, até mesmo em razão do quanto acima mencionado, têm direitos e deveres, vale dizer, benefícios e obrigações a serem regularmente observados. Aleatório porque essencialmente projetado para o futuro. O pagamento da indenização de seguro somente poderá ser cobrada se ocorrer, no mundo dos fatos, o sinistro, ou seja, o risco abstratamente previsto convalidar-se em evento danoso. Solene, porque tem de ser necessariamente escrito e na melhor forma de Direito, repleto de requisitos legais e formais. Feitas as considerações necessária para se entender bem quem é o segurador e o que é o negócio de seguro, temos condições de seguir adiante, tratando exclusivamente do seguro de transporte. O seguro de transportes ou a Carteira de Seguros de Transportes é uma das mais importantes de todo o mercado de seguro, já que movimenta cifras milionárias e um grande volume de prêmios. Divide-se em: Transportes Nacionais, Transportes Internacionais (a mais comum dentro do mundo do Direito Marítimo), e diversos Ramos de Seguro de Responsabilidade Civil dos Transportadores. Cada um destes ramos, por seu turno, é dividido em sub-ramos, tudo conforme o meio de transporte adotado e, mesmo, em modalidades distintas, todos com suas condições específicas. A cobertura básica cobre danos sofridos pela mercadoria (bem) confiada contratualmente para transporte em consequência de causas diversas, notadamente acidentes e incidentes com o veículo transportador. No caso específico do Direito Marítimo, muitos danos (faltas ou avarias, em linguagem estritamente técnica) são causados por má estivagem das mercadorias a bordo dos navios transportadores e/ou extravios, decorrentes de furto, roubo ou mesmo desídia operacional dos mesmos transportadores. A mercadoria segurada é entregue ao transportador. Havendo qualquer dano (faltas ou avarias), o segurador paga ao segurado, proprietário da mercadoria (chamada também de carga, quando entregue ao transportador) a indenização devida, tendo como teto máximo aquele previsto no contrato de seguro e diretamente correspondente à razão custo e frete (custo da mercadoria e custo do transporte marítimo: frete). Pois bem, com o pagamento da indenização ao segurado, o segurador sub-roga-se legalmente em todos os direitos e ações do segurado. Destarte, terá o segurador o direito público subjetivo de buscar do causador do dano, em regra o transportador marítimo, o ressarcimento daquilo que pagou a título de indenização. O segurado, por sua vez, nada mais poderá reclamar, salvo, evidentemente, as perdas econômico-financeiras não cobertas pelo contrato de seguro, dentre elas os danos imateriais, isto é, lucros cessantes. Com efeito, se o segurado não tiver um seguro próprio prevendo a cobertura de lucro cessantes, poderá diretamente ajuizar ação contra o causador do dano (ilícito contratual) a fim de completar a salutar idéia de que a reparação civil deve ser a mais ampla possível. O segurador, por sua banda, estará limitado àquilo que pagou ao segurado como indenização securitária, sendo-lhe negado buscar em regresso quantias maiores, salvo aquelas diretamente atreladas à disputa judicial. Por outro lado, o fenômeno da sub-rogação opera-se em sentido amplo e restrito. Assim, quando se fala em todos os direitos e ações do segurado, fala-se, rigorosamente, na transmissão de todos estes direitos e ações, até mesmo os de natureza consumerista. Mesmo o segurador não sendo o consumidor final dos serviços de transporte e de depósito, tem o benefício de se valer do direito do consumidor pelo simples fato deste lhe ser integralmente transmitido com a sub-rogação, tratando-se de saudável mecanismo de calibragem e que tem por escopo a manutenção da Justiça. A sub-rogação legal da pretensão se opera de pleno Direito e de forma praticamente irrestrita, de tal sorte que os direitos de índole consumerista também são transmitidos, como dissemos, com o pagamento da indenização de seguro, não sendo justa ou devida qualquer restrição a esse importante direito. Daí, pois, a importância do segurador no Direito Marítimo, principalmente quando se tem a migração do “norma agendi” para o “facultas agendi”, já que a maioria das ações judiciais são patrocinadas por seguradores de cargas legalmente sub-rogados nos direitos e ações dos seus respectivos segurados. Podemos afirmar, sem risco, que as seguradoras são as grandes personagens do Direito Marítimo, pois são as autoras por excelência das lides judiciais. Temos observado uma questão de ordem prática que merece ser tratada com atenção neste espaço. Alguns órgãos jurisdicionais, especialmente monocráticos, presos, com todo e máximo respeito, ao formalismo pelo formalismo, exigem, não raro, a apresentação de um rol de documentos que não são necessários numa lide maritimista, mesmo quando no pólo ativo há uma seguradora legalmente sub-rogada nos direitos e ações do seu segurado, embarcador e/ou consignatário da carga. Falamos especialmente da apólice de seguro e do recibo de pagamento da indenização (ou equivalente). No que tange ao primeiro instrumento, a apresentação é absolutamente dispensável e prescindível, pois a apólice por si só não prova a sub-rogação e seu conteúdo é objeto estranho ao bem de uma lide maritimista focada no inadimplemento da obrigação de transporte. Daí a absoluta falta de necessidade de sua apresentação nos autos de um dado Processo judicial. Já o recibo é inegavelmente importante, não se discute, pois ele é o instrumento que efetivamente prova a sub-rogação. O problema não reside na imprescindibilidade ou não da apresentação do recibo, mas como enxergá-lo à luz das relações comerciais contemporâneas. Aqui cabe com primor invocar a teoria tridimensional do Professor Miguel Reale. Ora, diante da agilidade das relações comerciais e da necessidade de utilização de meios eletrônicos e outros recursos, sempre tendo em vista o bem do segurado, uma seguradora nem sempre tem em mãos o recibo de pagamento da indenização de seguro, ao menos da forma antiga e literal que alguns, em verdade não poucos, órgãos monocráticos judiciais exigem. Uma seguradora paga milhares de indenizações securitárias por dia e o meio mais comum e usual é, sem dúvida, o depósito direto na conta bancária do segurado. Ganha, com isso, o segurado; ganha o erário com a certeza da tributação e ganha o mercado segurador como um todo, com um serviço mais eficiente e menos burocrático, compatível com os tempos atuais. Assim, o comprovante de pagamento bancário é, por correta equiparação legal, modalidade de recibo de pagamento de indenização e prova incontroversa da sub-rogação legal. Não raro, a seguradora opera com ressegurador e, portanto, ao invés de um recibo de pagamento, o que se tem para mostrar ao Poder Judiciário a legitimidade ativa para a causa decorrente da sub-rogação é um aviso de pagamento. Este instrumento, muitas vezes, é o único existente quando a indenização de seguro é paga em moeda estrangeira. Por mais que tudo isso esteja devidamente explicado no corpo do próprio documento e por mais evidente que o cenário possa ser aos olhos de qualquer intérprete de boa-vontade, ainda há, por incrível que pareça, quem assim não entende e órgãos jurisdicionais que chegam ao cúmulo de exigirem apresentação de microfilmagem bancária sob pena de extinção da ação sem julgamento do mérito. Em favor de tal entendimento, tem-se o costume, que é fonte mediata do Direito. O mercado atua de tal forma e a sociedade em geral, até mesmo o Estado, tira legítimo proveito disso tudo. Logo, esse costume não é apenas uma prática mercadológica aceitável e que se ajusta ao conceito de legalidade porque “não defeso em lei”, mas é em sentido estrito, ainda que secundária e “mediatamente”, fonte do Direito e fonte com peso invulgar, suficientemente hábil para a devida projeção de válidos e eficazes efeitos jurídicos. Respeitar o costume é imprescindível para que o Direito se transforme em Justiça, respeite a dinâmica social e não se encastele em si mesmo, retroalimentando-se nas formas. Em outras palavras, a forma, no caso elevada à enésima potência, ganha status indevido de substância e a Justiça, como o próprio Direito, é aviltado pelo formalismo. Sabido que Direito é norma, fato e valor. Ora, a norma diz prova de pagamento da indenização. Os fatos do mundo de hoje são diferentes e o valor a ser dado à regra igualmente, sobretudo quando da sua superposição ao suporte fático. Trata-se de irritante perda de tempo, sempre em desfavor do jurisdicionado. O mercado de seguros é um dos mais sérios e honrados que existe. Um, a seguradora jamais demandaria em juízo sem estar devidamente acobertada pelo fenômeno legal da sub-rogação. Órgãos controladores do mercado são contundentes demais em tal sentido, sendo, portanto, absolutamente sem sentido a equivocada inteligência emprestada ao tema. Enfatiza-se, por necessário, que qualquer documento hábil e idôneo, incluindo-se comprovante de depósito bancário, é, em todos os sentidos, sobretudo de prova em juízo, recibo de pagamento de indenização de seguro e formalização da sub-rogação da pretensão. Outra coisa que merece especial atenção quanto ao segurador de carga é que ele, pelo fenômeno da sub-rogação, absorve todos os direitos e ações do segurado e consumidor original dos serviços de transporte. Isso, aliás, convém repetir, é matéria sumulada pelo próprio STF, além de algo expressamente disposto pelo Direito positivo. Mas, por outro lado, ele não se vê obrigado a respeitar normas contratuais assumidas ou unilateralmente impostas ao seu segurado e consignatário da carga. Por mais que possa parecer aos olhos menos acostumados ao universo do seguro uma via de mão única, a verdade juridicamente defensável é que a sub-rogação se opera amplamente para os direitos e ações, mas de forma absolutamente restrita no que tange aos eventuais deveres e ônus. Assim, além de considerações outras relativamente aos abusos contidos nas cláusulas unilaterais e adesivas dos contratos de transporte marítimo de carga, o segurador não se vê obrigado a observar as cláusulas de limitação de responsabilidade e de arbitragem, porque personalíssimas e somente ligadas ao embarcador e ao consignatário da carga. Com efeito, se o segurador não tomou parte no contrato de transporte, não é justo e devido que ele seja eventualmente obrigado a aceitar as cláusulas do contrato de transporte, na medida em que sua manifestação de vontade não se viu em momento algum convolada na efetivação do contrato. Isso, sempre é bom enfatizar, a despeito da ilegalidade e da inconstitucionalidade das referidas cláusulas impositivas de jurisdição, de sistema arbitral ou de limitação de responsabilidade. E com base na parte final do comentário acima é que ora se inicia o combate à aplicação da cláusula de arbitragem. Nos conhecimentos marítimos em geral, a cláusula de arbitragem caminha lado a lado, de mãos dadas e almas, na mesma estrada do dirigismo contratual, com a cláusula de arbitragem. Logo, é perfeitamente possível e recomendável aborda-los numa mesma oportunidade, como a seguir: DA CLÁUSULA DE ELEIÇÃO DE FORO: ABUSO DE DIREITO INEFICÁCIA E ILEGALIDADE DAS CLÁUSULAS DE ARBITRAGEM No mesmo caminho, tem-se por inválida e ineficaz, nula de pleno Direito, toda cláusula adesiva dispondo como foro de eleição aquele ditado ao alvedrio do transportador marítimo. De um modo geral, os transportadores (quaisquer que sejam os países de origem) fixam como foros competentes os de Londres e o de Nova York, impondo ônus excessivo ao embarcador ou ao destinatário final do transporte de cargas. Com efeito, imaginemos o caso de um importador brasileiro, destinatário final do serviço de transporte de uma carga, que se vê forçado a litigar em Londres, com custo extremamente elevado e com um sistema legal desconhecido, muito provavelmente equipado para proteger, com certo exagero, os transportadores. Isso porque sendo o transporte de cargas atividade vital para a economia de um país, as nações mais desenvolvidas sempre se ocuparam em considerar o ramo como estratégico para suas pretensões globais, armando seus acervos legais com regras de proteção (muitas vezes exageradas e desequilibradoras) aos transportadores marítimos. Por isso é que não se pode emprestar, a rigor, à cláusula de eleição de foro a estampa e a proteção do “pacta sunt servanda”. Bem ao contrário, essa Cláusula, como dissemos, é nula, tendo-se para a fixação do foro competente outros critérios, ditados pelo sistema legal brasileiro. Com efeito, o lugar de cumprimento de uma obrigação de transporte é o critério legal normalmente utilizado para os casos de importação. Já em se tratando de exportação, a fim de tutelar o interessado brasileiro, tem-se como critério legal o lugar em que a obrigação de transporte foi celebrada. Outro critério válido é o do lugar dos fatos ou da apuração dos fatos. Todos esses critérios, ditados pela lei, sobrepõem-se ao draconiano foro de eleição. Se o autor da ação for um segurador legalmente sub-rogado, a situação é ainda mais confortável em termos de rechaçamento de qualquer arguição de validade da cláusula de foro de eleição, pois o segurador não foi parte do contrato de transporte. Ora se a cláusula não é capaz de prejudicar o celebrante do contrato de transporte, com mais razão não poderá atingir o segurador legalmente sub-rogado. Por isso, seguimos convictos em afirmar que, em princípio, salvo casos muito excepcionais, a jurisdição brasileira será sempre a competente para apreciação da disputa judicial de Direito Marítimo, desprezando-se, assim, as cláusulas impressas no Conhecimento Marítimo. Não estamos afirmando que o foro de eleição não pode aparecer num dado negócio jurídico, mas que ao menos em relação ao contrato de transporte marítimo, até por sua natureza adesiva, realmente não pode viger e produzir efeitos jurídicos. O foro de eleição, em sentido amplo, foi mantido no direito processual brasileiro pelo art. 111 do Código de Processo Civil, estabelecendo a possibilidade das partes alterar convencionalmente a competência em razão de valor e do território, com a correspondente eleição do foro onde devem ser propostas as ações pessoais e, em algumas hipóteses, até as reais (art. 95 do CPC). Assim, com exclusão das ações relativas a imóveis e do inventário de bens situados no Brasil, cuja competência internacional é adstrita aos órgãos judicantes brasileiros, é viável a eleição de foro estranho à jurisdição nacional pelas partes interessadas. Mas é preciso que se ressalte bem a força da expressão “convenção”. Em contrato de adesão a idéia de convenção não subsiste, principalmente se o autor da ação, caso específico do segurador sub-rogado, sequer tenha figurado no corpo do instrumento contratual. Por isso mesmo, o posicionamento jurisprudencial tem sido no sentido de que tal “convenção” se mostra, na maioria das vezes, abusiva, tendo-se em conta que traz vantagens apenas para um dos contratantes, o transportador. Logo, nos contratos de adesão, a cláusula de eleição do foro tem declarada ex officio sua nulidade. Abaixo, reproduzimos enunciando de Súmula do extinto Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo: Súmula nº 14 do 1º TACivSP: “Contrato de transporte. Seguradora subrogada – A cláusula de eleição de foro constante do contrato de transporte ou do conhecimento de embarque é ineficaz em relação à seguradora sub-rogada.” No mesmo sentido, o julgado abaixo: RT 623/90 “A cláusula de eleição de foro constante de contrato de transporte ou do conhecimento de embarque é ineficaz quanto à seguradora sub-rogada no crédito da remetente, pois não está a seguradora na posição contratual da remetente segurada, detendo apenas o crédito desta.” (UJ 356.311 – TP – j. 7.5.87 – rel. Juiz Araújo Cintra) A doutrina também se posiciona contrariamente às cláusulas de eleição de foro que se revelam abusivas, especialmente em detrimento daquele que sequer figurou na relação contratual, como é o caso do segurador legalmente sub-rogado. José Frederico Marques75 afirma: “Questão que tem sido muito discutida em nossos tribunais é a da extensão do foro de eleição ao segurador, nos contratos de transporte. A melhor doutrina, segundo nos parece, é a dos que entendem que a avença entre a transportadora e o expedidor da mercadoria não vincula terceiros. Embora o segurador fique sub-rogado nos direitos do credor originário, ocupando, assim, a posição tal efeito da sub-rogação ao processo civil”. Outro julgado do extinto Primeiro Tribunal de Alçada Civil merece nossa especial atenção: RT 623/90 “Os foros especiais e o do domicílio do réu são concorrentes, por conseguinte, concorrentes este último e o de eleição. E diz-se que a competência é concorrente quando simultaneamente vários foros forem competentes, podendo haver a escolha de um autor, em detrimento dos demais (…)” “Proposta a ação, dá-se por escolhido o foro, pouco importando que o réu mude seu domicílio ou ocorra outra alteração de fato, pois esse é o momento da perpetuatio jurisdicitionis, que em nosso Direito não é simultâneo ao da prevenção, pela qual se fixa a competência do juízo, cristalizando-a (art. 86 e 219 do CPC).” “O foro do domicílio geral; e concorrente com os demais, por não trazer à ação nele ajuizada prejuízo ao réu, que melhor poderá defender-se, devendo-se ressaltar haver normas expressas – que são consideradas de caráter geral – quanto ao foro de eleição (arts. 95, Segunda parte, do CPC e 846, parágrafo único, e 950, parágrafo único, do CC).” Na esteira disso, temos ainda que repudiar a cláusula que impõe a arbitragem. Não porque não tenhamos apreço pela arbitragem, muito pelo contrário. Trata-se de uma forma salutar de solução de conflitos e que precisa ser incentivada e praticada no Brasil. Mas, por causa da forma como a arbitragem é imposta no cenário das relações contratuais maritimistas. Ela vem quase sempre à reboque da cláusula de imposição de foro estrangeiro, não competindo à parte interessada qualquer manifestação de vontade. Além disso, a cláusula que a dispõe é irregular aos olhos do sistema legal brasileiro. Com efeito, a lei de arbitragem brasileira dispõe que a cláusula que prevê a arbitragem num contrato de adesão tem que ser redigida em letras garrafais, destacada do texto geral e com expressa assinatura sobre seu conteúdo da parte supostamente interessada. Outro modo é a previsão da arbitragem no texto apartado e anexado ao contrato de transporte. Nada disso é observado pelo transportador marítimo. Ele simplesmente se limita a impor a arbitragem na mesma cláusula que determina a eleição do foto estrangeiro, o que a faz manifestamente ilegal, inválida e ineficaz. Há de se considerar, ainda, que o contrato de transporte é uma estipulação em favor de terceiro, de tal modo que o consignatário da carga, embora parte da obrigação de transporte, não participou da celebração do contrato, muito menos o seu segurador, o que torna ainda mais sem efeito a cláusula de arbitragem. Conclusão comum Diante das razões e fundamentos aqui colocados, nos parece correto o entendimento jurisprudencial de não submeter de maneira compulsória os casos de ressarcimento ao crivo da arbitragem. Trata-se de algo manifestamente ilegal, uma vez que a arbitragem prevista no conhecimento de transporte marítimo de carga, como visto detalhadamente nas considerações de ambos os autores é uma cláusula unilateral, disposta num contrato de adesão, sem aquiescência do consignatário da carga, segurado, quanto mais da seguradora, e redigida ao arrepio das formalidades substanciais exigidas pela Lei de Arbitragem brasileira. Mais do que algo ilegal, a eventual aplicação da cláusula de arbitragem pare a seguradora sub-rogada que busca o ressarcimento em regresso contra o transportador marítimo que inadimpliu obrigação de transporte seria, será e é um grande e grave erro, suscitando até mesmo arguição de inconstitucionalidade, por ofensa à garantia fundamental de acesso à Jurisdição. Por mais que a arbitragem possa ser um procedimento inteligente, saudável, afeto aos direitos disponíveis e de índole empresarial, como os que tangem ao transporte marítimo de carga, ela jamais se revestirá da dignidade que só a função jurisdicional do Estado tem e nunca poderá ser aplicada sem o signo da voluntariedade. Obrigar, por exemplo, alguém que não aderiu voluntariamente ao procedimento de arbitragem à dele tomar parte é algo perigoso e que põe dúvida quanto à lisura do próprio instituto. Conforme debatido, a adesão para resolução da lide via arbitragem deve ser voluntária e com expressa manifestação de vontade das partes. É necessário frisar que nenhuma crítica é feita ao sistema de arbitragem em si, muito pelo contrário, trata-se de medida eficiente e com grande valor na condição de auxiliar do poder judiciário, porém, entendemos que seu aceite sempre será uma prerrogativa das partes anuentes, não podendo sob hipótese alguma ser compulsória ou determinada, seja pelo judiciário ou mesmo por meio de cláusula em contrato de adesão com manifestação unilateral a respeito da matéria. Trata-se de medida que visa trazer segurança jurídica plena e absoluta para todos os “players” do transporte marítimo de cargas, com condições claras e objetivas para que todos atuem com o menor número de conflitos possíveis. Também nos cabe frisar que a possibilidade de cláusula de “oferta de arbitragem” deixa a possibilidade de escolha para todas as partes envolvidas, seja o transportador, dono da carga e também a seguradora para que decidam qual o caminho mais célere, economicamente viável, e mais interessante para as partes aderirem quando ocorrer lides envolvendo o transporte marítimo. Terminamos essa conclusão da mesma forma que terminamos a introdução, ou seja, enfatizando que a cláusula de arbitragem no Direito Marítimo é nula de pleno Direito, porque manifestamente abusiva e ilegal. E em sendo nula de pleno Direito para o consignatário da carga, segurado e vítima do inadimplemento contratual do transportador, com mais razão o é para o segurador sub-rogado, uma vez que este não pode tomar parte de uma obrigação que, além de ilegal e abusiva, não contou em momento algum com sua expressa anuência, sendo verdadeira truculência jurídica qualquer entendimento em sentido contrário e com vistas a ampliar, indevidamente, os efeitos jurídicos da sub-rogação. Ela é um direito do segurador, um direito que se reveste de função social e impacto econômico geral, não um ônus. JOSÉ LUIZ LOURENÇO JUNIOR, advogado, com experiência profissional no mercado de seguros, pós-graduado em Direito Marítimo pela Universidade Católica de Santos, membro da Comissão de Direito Marítimo da OAB-Santos. PAULO HENRIQUE CREMONEZE, advogado, com atuação no Direito do Seguro e no Direito dos Transportes, pós-graduado e mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, professor de Direito do Seguro da Fundação Escola Nacional de Seguros, professor de Direito Marítimo do curso de Direito da Unisanta, membro efetivo do IASP e da AIDA, membro consultor da Comissão de Direito Marítimo da OAB-SP, autor de livros jurídicos.